1. Um artigo de David Brooks sobre o livro de Amy Chua, a ‘tiger mother’ da China. Como alguém interessado em educação em geral (ossos do ofício) e pai de um baixinho desafiador, fiquei muito interessado nas idéias dela. Como alguém que por um bom tempo teve contatos intensos com a China (visitas, família morando lá) e ficou fascinado pelo país, fiquei mais interessado ainda. Falando de um ponto de vista estritamente ocidental, acho o livro dela uma bobagem a ser esquecida. Mas do ponto de vista de um curioso pela China, parece ser leitura fascinante, por condizer com tanto do que vi por lá. David Brooks foi o único crítico, dentre os que eu li, que acertou na mosca – mas não levou suas conclusões até onde devia. O método de Chua não prepara as filhas para pensar independentemente, não prepara as filhas para interagir criticamente com um grupo. Ele diz que estas são aptidões cognitivas cruciais, e conclui dizendo que o método dela é fraco (she´s a wimp) porque não prepara as crianças para as tarefas mais desafiadoras da vida em sociedade. Sim e não. Falando do ponto de vista de um americano, brasileiro ou europeu, ele está certo. Mas historicamente a sociedade chinesa não se desenvolveu assim. Não estou falando de cartas persas, nem de um espírito despótico oriental. Mas o governo e a sociedade por lá (eita generalização…) valorizam e recompensam gente que cumpre suas tarefas de maneira ótima, que se encaixam no grupo (e não que criticam o grupo) de forma ótima.A educação de Amy Chua é durkheiminiana (não no sentido de que Durkheim pensava assim, mas de que ele descreveu determinadas sociedades assim), visa reproduzir, fazer funcionar de maneira eficiente/eficaz e aperfeiçoar o status quo. A de David Brooks é iluminista, só não chamo de rousseauniana porque Brooks pessoalmente se remeteria aos fundadores da República americana, e não tem porque enfiar Rousseau goela abaixo de um cara que não pensa assim.
2. O curioso é que existem pressões em nossas sociedades ocidentais (e o plural aí é relevante) para que eduquemos nossos estudantes de maneira ‘chinesa’. Esse é o tema de uma coluna de Terry Eagleton no Guardian de alguns dias atrás. O ensino das humanidades é fundamental para que as pessoas pensem por si próprias, para que queiram mais do que simplesmente inventar um novo controle remoto, ou um meio de produzir energia mais eficiente. As pessoas precisam aprender a pensar suas sociedades, a engajar com elas, a melhorá-las, tornando-as mais justas, belas e moralmente melhores. Na minha opinião as humanidades se ferram nesse debate, mas não é porque o que elas fazem é controverso, e sim porque o que elas fazem é algo que todo mundo aceita e ninguém discute. Apatia e desinteresse são o resultado. Eu entrei numa confusão 15 anos atrás, digna deste livro do Philip Roth, quando eu justifiquei estar lendo Homero com alunos da 5a série dizendo que o que nos separa dos macacos é a literatura grega. É óbvio que isso é um exagero, e eu estava querendo briga mesmo, mas a pessoa com quem eu estava discutindo (uma pedagoga, ou seja, não era uma filistina qualquer) se sentia confortável o suficiente para dizer que aquilo era difícil demais e não era importante para crianças estudando a civilização grega. Eu ganhei a discussão (“não é meu problema se a senhora e os pais não entendem Homero, meus alunos entendem”), as crianças já tinham esquecido quem era Homero alguns meses depois, mas nos divertimos muito lendo trechos da Ilíada (e quem não se divertiria?).
3. Isso me leva ao meu último ponto: que universidade queremos? A gente costuma debater universidade, inclusive nesse blog, em termos de financiamento, algumas vezes em termos de formação de professores, mas eu estou cada vez mais convencido de que a questão chave é o tipo de aluno que queremos formar. O aluno crítico, dotado de uma formação sólida, de uma visão humanística, esse não vai sair de turmas de 100 alunos de um instituto de ciências humanas. Se for esse o aluno que queremos (e que eu não fui), precisamos de turmas pequenas, de mais horas de aula (faculdade de história em 4 horas por dia durante 4 anos?) e de universidades que se dediquem a expandir horizontes ao mesmo tempo que a informar. Minha universidade, que parece ótima em muitos aspectos (estou começando), adotou a estratégia de criar institutos em diversos campi: humanas aqui, medicina ali, ciências acolá. O problema é que cada vez mais o cidadão crítico precisa saber geografia para entender a tragédia da região serrana do Rio, precisa saber ciências para decidir o que pensa sobre o aquecimento global, história do Brasil para votar contra ou a favor da política de quotas. Se não fica prisioneiro de editoriais de jornais de direita, de slogans pseudo-marxistas do barzinho do DCE. No caso das humanas, estamos criando institutos técnicos em humanidades (e mesmo assim insuficientes, porque são poucas horas, poucas disciplinas).
Mas o problema é que não está claro para mim (e nem para ninguém) que queremos esse estudante crítico. O debate na imprensa (mesmo aquela mais à esquerda) valoriza a mão de obra para a fábrica, o fermento do Brasil grande. Isso é ilegítimo? É claro que não, mas é uma escolha diferente da minha – e do discurso mais visível nas próprias universidades. Se alguém disser que a faculdade de História (ou de Letras, ou de Geografia) visa formar professores para atender a demanda reprimida por educação básica no país, que ela tem que ser que nem uma fábrica de boa qualidade mas produzindo em série, como discordar? Existe a demanda, ela é um gargalo, e isso tem que ser resolvido. Se a maioria de nossos estudantes tem que trabalhar para estudar, porque estudar é um privilégio, como argumentar em favor de um curso de História de tempo integral? Tem na Unicamp, mas tem nas outras? Cabe nas outras?
14 comentários
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janeiro 21, 2011 às 12:34 pm
Manoel Galdino
Aí, o NPTO faz falta mas ler o seu blog tem sido ótimo. Ele devia faze um post recomendando a audiência dele vir pra cá, hein?
Sobre o texto, faço uma conexão. Universidade Pública E gratuita, pra mim, só faz sentido se for pra formar estudante crítico. Se for pra ser fábrica tem que cobrar…
janeiro 21, 2011 às 1:35 pm
gutomachado
Obrigado! Mas ainda teria que comer muito feijão pra isso!
janeiro 21, 2011 às 1:24 pm
pouco
Olá,
O discurso atualmente hegemônico é o da necessidade de formação de técnicos. De chineses trabalhadores.
Ao lado disso, há o discurso de que “o aluno não entende_______ (Homero, filosofia… complete o espaço em banco com o que quiser)”.
Creio até que isso complementa a ideia de que educar é ensinar a “usar o computador” ou apertar parafusos, afinal, subestimar a capacidade criativa é reforçar a necessidade de especialização técnica.
Tem um conto do Isaac Asimov, em que uma sociedade futurista aboliu as escolas pois em certa idade as crianças enfiam a cabeça num micro-ondas e aprender a ler, escrever e, na adolescência, uma profissão. Aqueles que não conseguem aprender assim são levados para uma escola especial, para retardados mentais… se bem que no conto, os tais “especiais”, justamente por não conseguirem ter seus cérebros moldados e precisarem ler e ruminar, é que se tornavam os inventores.
O triste é que no conto, os “criativos” viravam engenheiros e inventores, e os … digamos… nem-tão-criativos assim, psicólogos e historiadores (pô Asimov!).
Dei aula numa faculdade de pedagogia e, o mais triste, é que mesmo lá predominava a ideia que educar é “preparar para o mercado”. Lecionava História da Educação… e o mais difícil era convencer da relevância de “estudar coisa velha” (definição de uma aluna).
E eu tentando dizer que, diferentemente das formigas, nós temos memória. Aprendemos com ela. Avançamos com ela! E eu ouvia que era um professor cruel que chamava os alunos de formigas…
Mesmo na Faculdade de História tive de ouvir “o Brasil nem teve Idade Média, pra que estudar isso, então?”
Pois é…
janeiro 21, 2011 às 1:36 pm
gutomachado
O argumento sobre a Idade Média é um clássico. Eu costumava zoar meu professor de Brasil III dizendo que se eu quisesse saber o que aconteceu ontem eu teria gravado o Jornal Nacional. Estupidez com estupidez. Não sara, mas diverte.
janeiro 21, 2011 às 2:04 pm
pouco
😀
pô, que aluno chato vc foi, hem?
janeiro 21, 2011 às 2:41 pm
He will be Bach
” Eu ganhei a discussão (“não é meu problema se a senhora e os pais não entendem Homero, meus alunos entendem”), as crianças já tinham esquecido quem era Homero alguns meses depois, mas nos divertimos muito lendo trechos da Ilíada (e quem não se divertiria?).”
Bom, primeiro, a Iliada é chatíssima. “Amianopoulos, invocando a proteção de Atena, usando as técnicas de seu pai Amianopoulos-mor, rei de Argos e descendente de Perseu por parte de tio-avô, desferiu uma espadada em Bachopoulos. Este ficou meio puto e, invocando a proteção de Dionísio, de quem era filho bastardo por um relacionamento extraconjugal de sua mãe com o deus, que estava disfarçado de cisne, para se passar por Zeus, e, ainda, furioso como Áries, de quem também era aparentado na linha colateral com o já referido Perseu, desferiu uma machadada em Amianopoulos. Por sua vez, este, com excepcional agilidade, instou seu braço a defender o ataque, e, com o escudo abençoado de Ártemis e seu irmão Apolo, repeliu a machadada de Bachopoulos.”
Credo. Só você mesmo. 🙂
Segundo, totalmente concordo com você. Não há por que não dar os clássicos a alunos bem cedo. É só dar o negócio bem dado. Só que isso dá MUITO mais trabalho do que chegar e dizer: “Esse é Machado de Assis, nosso maior escritor. Leia esses 4 contos sem nenhuma contextualização, e GOSTE DELES.” E isso foi na minha 8ª série. Claro que detestei esse tal de Machado de Assis, achei-o chatíssimo e pedante. Só 2 anos depois, graças à orientação de amigos, fiz o trabalho que minha professora devia ter feito e acabei gostando do moço.
Sobre o ponto 3, você já leu Profissão, do Asimov? É o conto que o “pouco” cita. Toca bem nesse ponto. Lendo o seu texto, consigo dar outro sentido a esse conto: é uma crítica ao sistema de ensino que é massificado, mas ao mesmo tempo espera que “gênios” sejam formados. Nesse sistema, o “gênio” precisa ralar loucamente, superar as limitações do próprio sistema (aufhebungar?), tomar consciência da especificidade de sua curiosidade e formação multidisciplinar, e escapar de tudo aquilo. Assim, o sistema massificado funcionaria “pela culatra”, pois formaria “gênios” deixando-os tão putos que eles não têm outra opção.
Aliás, pouco, eu não vi do seu jeito: pelo que vi, o “über criativo” não necessariamente vira engenheiro. Tanto que o protagonista tem idéias próprias sobre… pedagogia! Ou seja, o “über criativo” pode muito bem ser sociólogo, caso em que ele criaria novas teorias sociológicas, enquanto os “não tão criativos” seriam os operadores dessas teorias. Mas, ainda assim, num nível bem acima dos “profissionais registrados”.
Aaaaah, escrevi demais!
janeiro 25, 2011 às 11:07 am
gutomachado
Eu não li esse conto não, conheço pouquíssimo do Asimov. Meu medo é lê-lo e começar a jogar RPG, fazer piadas com alusões a Guerras nas Estrelas, cumprimentar pessoas como o Spock…
janeiro 25, 2011 às 9:46 pm
hwbach
Qué isso rapaz. Jogar RPG, Star Wars e “live long and prosper” são efeitos que independem da leitura de Asimov. Quem curte essas doidices, geralmente, curte ficção científica e, por isso, acaba curtindo o Asimov. Asimov decorre de uma causa comum, mas não é capaz de criar essa mesma causa. Se A implica B, não necessariamente B implica A. 😀
janeiro 26, 2011 às 4:33 pm
paulo afins
Na adolescência, gostava de ficção científica. Gostava de imaginar outras épocas e lugares.
Creio, até, que foi isso que me fez gostar de História… apenas passei a “olhar para trás”.
janeiro 28, 2011 às 8:18 am
gutomachado
Eu realmente nunca li o Asimov – mas li o Ray Bradbury, que não é a mesma coisa mas eu gostei. Não tenho nada contra ficção científica – mas eu não pude resistir a zoação!
janeiro 24, 2011 às 1:47 am
tecnocaos
Concordo com o He will be bach, e nem precisa falar só de “genios”. Só é possível distinguir o aluno crítico em comparação com o que é medíocre, acomodado e comum. É meio complicado planejar como formar alunos críticos, pois este objetivo só é alcançado quando o próprio aluno ultrapassa o planejamento inicial do professor.
Não dá pra obrigar alguém a ser crítico, mas é possível obrigar alguém a ler um texto do Hobsbawm. O algo a mais só pode partir do próprio aluno, basta que o professor deixe as portas abertas ao criticismo (o que nem sempre acontece). O professor normalmente controla a apreciação do assunto do qual discorre, mas esta apreciação é crítica para o professor, se o aluno só a aceita não está sendo necessariamente crítico.
Recentemente conversei com um professor que mais me pareceu se preocupar em desenvolver nosso senso crítico, e o mais incrível é constatar que eu discordo dele em vários assuntos importantes!
Muitas vezes até existe este discurso de “formar alunos críticos”, mas isso é muito vago e impreciso. Por outro lado, formar profissionais é um objetivo válido, menos charmoso, mas importante e alcançável. E deixar as portas abertas ao criticismo é o grande desafio, mas isso em termos de política educacional sempre fica superficial, só funciona mesmo numa prática instintiva e quase incontrolável. A humanidades é o coringa do baralho, não dá pra prever qual papel ela vai tomar, e quando vai agir, mas ela é sem dúvida fundamental.
janeiro 24, 2011 às 5:19 pm
João Paulo Rodrigues
Concordo com o tecnocaos. Não temos como saber quantos historiadores por ano precisaríamos para ser uma sociedade sequer perto da que desejamos. A própria idéia desta contabilidade é absurda (e valeria para várias áreas das ciências hard, como física ou geologia). Mas o Brasil sabe quantos médicos e engenheiros precisa formar, pois a meta desta formação é quantificável. Eu creio firmemente que já entramos perdendo nesse debate, tanto pelas características de nossa sociedade (que podem vir a mudar, claro), mas, sobretudo, pela incompreensão mencionada pelo tecnocaos. Temos que sair da defensiva aceitando a premissa básica do imperativo “desenvolvimentista” que temos pela frente – lembrando sempre, na linha da discussão do financiamento, que há um desnível natural de exigência de recursos entre estas áreas e as humanas, com alguma exceções, notadamente nas interfaces entre humanas e áreas técnicas. O Brasil, por exemplo, precisa de um número muito grande de restauradores, bibliotecários e arquivistas bem formados, que deveriam trabalhar em laboratórios, bibliotecas e arquivos bem equipados em um número tal que demandaria muito mais grana do que é aplicado no setor. E isso faria uma maior diferença para a historiografia pátria do que o aumento de bolsas de produtividade ou de cursos de pós (ai, atirei em meu próprio pé).
Ficando na seara universitária, o post toca no ponto essencial, mas, curiosamente, é a atenção a ele (o aluno que queremos) e não seu esquecimento, que tem gerado os problemas atuais. O que mais vejo crescer é a ideia de formar um aluno que não se especialize de cara, pois a obrigação de que com 17 ou 18 anos ele decida sua profissão seria inadequada e tenderia à evasão escolar (o que em parte é correto), mas, ao mesmo tempo, que ele passe menos tempo na universidade (ciclos básicos, graduação em dois a três anos, mestrado em um, passagem direta a doutorado quando for o caso), tudo… para ter uma mão de obra especializada. A conta não me parece fechar e gerou estes cursos novos de baixa qualidade, que disputam espaço com os cursos tradicionais e dispersam os esforços de docentes (maquiando, aliás, algumas necessidades de concursos). É por essas e outras que me convenci de que para podermos oferecer uma boa formação aos alunos de história deveríamos ter menos, e não mais, aulas por semana. Meus alunos (e isso me lembra minha graduação), apesar da onipresente preguiça, da espantosa cultura da não-leitura e do fato de que tantos trabalham, precisam é de mais tempo para ler, de espaço para fichar um livro, algum tempo para refletir e discutir com colegas, de preferência na biblioteca, e não passar os olhos por um capítulo ou artigo (apesar de os haver em profusão que são essenciais), quando o tempo sobra. Com turmas menores passando menos tempo em sala de aula, poderíamos ter turmas pequenas e efetivar a prática da discussão, mesmo em cursos depreciados, como Antiga ou América (minha cadeira) desde que, com isso, se abrisse espaço para currículos mais variados e obrigatoriamente mais amplos. Uma disciplina poderia ter dois semestres, por exemplo. A partir disso, poderia valer a pena tentar algo na base de ciclos básicos de formação, pois mesmo que o aluno opte pelo ecletismo, ele teria a obrigação de algum aprofundamento logo de cara.
janeiro 24, 2011 às 5:24 pm
João Paulo Rodrigues
Ah, sim, sobre aulas-hora: levando em conta que temos que escrever, pesquisar, administrar departamentos e cursos, participar de colegiados, ir a bancas, participar de congressos, orientar IC e pós, relatar resultados de bolsas nossas e dos alunos, ser peer-reviewers e, por fim preparar as aulas, puxa!, ficar mais em sala me parece reforçar a cultura dominante de ter mais com o mesmo tempo disponível. Acho só levaria a mais maquiagem.
janeiro 26, 2011 às 3:05 pm
Ser Universitário « Blog da Jailma Oliveira
[…] escreveu sobre temas que remetem a que foi falado nos dois parágrados acima, que são “Sobre educação e humanidades” e “Qual universidade? Qual aluno?“. Destaco pra esse post o segundo link, onde o […]